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Um Natal em missão

Sempre que falamos no Natal uma das imagens que nos surge é uma mesa rodeada daqueles que nos são mais queridos, a nossa família, mas nem todos vivem essa noite da mesma forma tal como constatamos no Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (CHTMAD).

Nas árvores as luzes piscam entre os enfeites, na sua base o presépio fica escondido por uma pilha de presentes que mais tarde serão abertos entre sorrisos. No ar o cheiro a bacalhau e a canela das rabanadas e filhoses que servem de sobremesa. À volta da mesa os pais, filhos, tios, avós e primos vão trocando sorrisos e conversas.

O cenário é perfeito e o coração aquece um pouco mais, mas nem todos têm a possibilidade de o viver. Entre os vários profissionais que passam essa noite a trabalhar estão auxiliares, médicos e enfermeiros. Um hospital nunca fecha portas para que se o azar nos bater à porta alguém possa vir em nosso socorro.

Ana Carvalho é Assistente Operacional no hospital de Vila Real, sede do CHTMAD há 24 anos e foram já várias as consoadas que passou em serviço, algo que encara com espírito de missão, mas que deixa sempre um travo amargo, tanto nela como na família que fica em casa.

A trabalhar no serviço de urgência, Ana reconhece que nos últimos anos a noite de 24 de dezembro tem sido mais trabalhosa apesar de ser um serviço “de passagem” onde se pretende que o doente passe o menos tempo possível ao contrário do que acontece por exemplo no internamento.

Os primeiros anos foram complicados, com o tempo foram percebendo que esta é a minha missão, e o mesmo acontece com os meus colegas, também eles passam pelo mesmo. As noites são todas elas custosas, a de Natal custa um pouco mais porque deixamos os que mais gostamos e vimos para o hospital onde temos a nossa segunda família.

Ana Carvalho

Como trabalho na urgência nunca estamos muito tempo com os doentes, normalmente não ficam aqui muito tempo, é um serviço onde o doente fica no máximo 24 horas. No serviço de internamento, por exemplo, já é diferente e aí os meus colegas tentam sempre dar um pouco mais de conforto e atenção aos pacientes que estão internados”.

Passar a noite a trabalhar não significa no entanto que o espírito natalício não esteja presente e, como segunda família que se intitulam, tentam sempre marcar a noite com um jantar para o qual todos contribuem trazendo algo.

Tentamos de alguma forma juntar esta segunda família pelo menos na hora de jantar mas nem sempre é compatível. Normalmente combinamos entre nós o que cada um traz para depois nos tentarmos juntar e fazer uma consoada.

O facto de estar aqui já há vários anos, e ter outros colegas na mesma situação, acaba por se tornar importante porque é sempre possível ter mais esse espírito de família, já nos conhecemos bem”.

Das muitas noites de Natal e Passagem de Ano que Ana passou em serviço sobram estórias mais ou menos engraçadas como um ano em que a consoada podia ter tido no menu uma pizza de bacalhau.

“Tivemos uma vez uma senhora que veio para as urgências na noite de Natal, ela e o marido são proprietários de uma pizzaria, em tom de brincadeira dissemos que era engraçado ter uma pizza de bacalhau para ser diferente. Efetivamente nessa noite isso não aconteceu até porque o restaurante estava fechado mas passado uns dias apareceu aqui com uma pizza como forma de agradecimento pelo que fizemos pela esposa”.

Se os 24 anos de serviço de Ana Carvalho já serviram para  ter essa experiência, Ana Sofia Alves, no serviço de medicina intensiva, cumprirá este ano a sua primeira noite a trabalhar.

A médica, ainda a dar os primeiros passos na profissão, confessa que tem aproveitado para “trocar algumas experiências” com os colegas mais antigos que já passaram pelo mesmo, o que já lhe permitiu saber que “se houver algum tempo de pausa pudemos conviver e passar algum tempo juntos”.

Ao contrário das urgências, no serviço de medicina interna os doentes ficam acamados por períodos mais alargados, havendo mesmo quem peça para ter alta sendo assim possível passar o Natal junto da família. Não sendo sempre possível, Ana Sofia Alves explica que nessa noite é dada uma atenção especial àqueles que estão à sua responsabilidade.

“Sim, a maior parte dos doentes que ficam em medicina o que pedem é realmente para irem embora e passarem o Natal com as famílias. Tentamos sempre ir vê-los e dar uma palavra de conforto para que sintam, que apesar da família não estar aqui com eles, estamos nós e estamos aqui também para dar conforto e não só a parte da medicina em si.

São doentes críticos que precisam de muitos cuidados, apesar de serem dias de festa isso não pode ser descurado. Há um sentimento de missão e de querermos  fazer o melhor por estes doentes. Pensamos muitas vezes que se fosse alguém da nossa família gostaríamos que alguém abdicasse um bocado da parte pessoal para cuidar deles.

Este é um serviço onde o doente passa algum tempo, sabemos tudo sobre eles, conhecemos os familiares, sabemos histórias. Os nossos doentes por vezes são muito graves e às famílias também lhes custa estar longe, mas sabem, e são os próprios a dizer, que eles estão em boas mãos. Isso é muito gratificante para nós”.

O facto de ser natural de Bragança, onde está a família torna tudo um pouco mais difícil, reconhece a médica sublinhando que a distância não permite sequer uma visita rápida dos familiares.

Nélson Barros é outro médico do serviço de medicina intensiva. Com mais anos de experiência que a sua colega, o médico assume que é difícil estar longe daqueles que são mais importantes para nós.

“Não é fácil estar longe da família, mas é de facto um sentido de missão estar aqui com os nossos doentes, e nessas alturas é isso que vem ao de cima, a componente humana”.

Com vários anos de experiência , Nélson Barros assume que os natais mais difíceis foram os vividos durante a pandemia Covid-19

“O Natal mais complicado foi na pandemia da Covid, tínhamos 24 doentes muito graves, e uma equipa que já estava em exaustão. O que amenizou um pouco o peso  dessa noite foi o facto de estarmos aqui todos juntos e a comunhão entre a equipa permitiu passar, dentro do possível, uma consoada boa. A seguir à consoada a noite de trabalho foi a pior noite. Foi das piores, foi tenebroso”.

Nélson reconhece que não há muitas pessoas a recorrerem essa noite ao hospital para não ficarem sozinhas, “no interior o sentimento de família e a proximidade entre as pessoas é maior e esses casos são pontuais, ao contrário do que acredito que aconteça nas grandes cidades”.

Ainda no CHTMAD, mas já no hospital de Lamego, a nossa reportagem encontra Carla Loureiro, enfermeira há 26 anos que assume ter-se voluntariado para trabalhar durante a noite de Natal durante os primeiros 10 anos de carreira.

Nos primeiros 10 anos de serviço voluntariei-me para fazer a noite de Natal porque não tinha filhos e queria ter a Passagem de Ano livre(risos). Para quem tem filhos passar a noite de Natal aqui, acaba por ser mais ingrato por isso não me importava de ser eu a fazê-lo.

Quando optamos por esta profissão sabíamos que esta seria uma situação inerente à própria profissão por isso já sabíamos que ia ser assim. Estamos sempre prontos para ajudar as pessoas, é uma casa que está sempre aberta e o socorro não escolhe dias, nem horas, temos de estar cá para isso.

O sentido de missão ajuda, claro que entramos desanimados porque é complicado, mas quando estamos cá, e como é uma altura que as pessoas estão mais sensíveis, mais calmas, acaba por ser uma noite mais afetuosa e o trabalho corre.

Nós tínhamos de estar cá se eu tivesse algum familiar no hospital eu ia querer que alguém cuidasse deles, é a nossa missão é para isso que estamos cá. Acaba por ser um dia como os outros. É uma coisa inerente à nossa profissão”.

Tal como no hospital sede do Centro Hospitalar, também no hospital de Lamego os profissionais tentam amenizar a distância de casa com alguns momentos em equipa, como explica a enfermeira.

“Fazemos sempre um género de consoada, cada um traz uma coisa e acabamos por fazer uma mesa da ceia de Natal, e na Passagem de ano também. Nem sempre conseguimos estar todos juntos porque o serviço não tem hora marcada, contudo há um esforço para que consigamos passar algum tempo em equipa”.

Se em Vila Real o médico Nélson Barros já tinha assumido os anos de pandemia como os mais difíceis para trabalhar, Carla Loureiro também o reconhece apesar de sublinhar que mesmo que tivesse sido possível passar em casa, havia sempre uma “obrigação” de estar afastada dos que lhe são mais queridos.

“Durante a pandemia toda a situação foi mais difícil. Na minha perspetiva não foi tão difícil porque havia as restrições de estar com a família por isso se não estivéssemos aqui estávamos em casa limitados ao nosso agregado familiar, e mesmo com esses teríamos que ter cuidados redobrados porque não queríamos ser a fonte de uma contaminação”.

Carla recorda ainda que há alguns anos se viviam situações diferentes e que na noite de Natal os pacientes que não tinham a necessidade absoluta de estar no hospital acabavam por receber uma alta temporária que lhes permitia passar a noite em casa junto da família.

“Quando estava no serviço de Medicina era normal os pacientes irem a casa passar a consoada com as suas famílias, agora isso já não acontece, estavam todos desejosos de ir consoar a casa, iam só para isso mesmo. Tinha de haver condições para isso, é claro, contudo atualmente isso já não acontece. Claro que os doentes o que querem é ir com a família, eles estão cá hoje e só querem estar bem para ir consoar”.

Carla Loureiro

Se assim era no passado, atualmente vive-se outra realidade, a saída de muitos do interior para as grandes cidades do litoral acaba por deixar alguns mais desamparados, em especial os mais idosos que recorrem ao hospital para evitar uma noite de solidão.

“Nota-se que há pessoas que querem estar no hospital, querem um teto, querem comer, querem ter um sítio onde estar, é uma realidade que neste dia ganha uma dimensão maior”.

É no sentido de missão e na “segunda família” que constroem no local de trabalho que se “refugiam” para amenizar o sentimento de ausência em noites tão especiais como o Natal ou a Passagem de Ano, mas para quem trabalha num hospital estas noites são passadas de coração apertado longe daqueles que são especiais, a família.

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