Mário Trindade: “Se fosse fácil se calhar amanhã não me lembrava mas passei muitas dificuldades para lá chegar”
[caption id="attachment_2827" align="alignleft" width="300"] Mário Trindade, atleta Paralímpico natural de Vila Real/ Foto: Salomé Ferreira[/caption]
Distinto atleta Paralímpico Nacional e Internacional Mário Trindade afirma que 2016 foi o “grande ano” da sua carreira. Ano que ficou marcado pela participação do atleta vila-realense nos Jogos Paralímpicos no Rio de Janeiro, um sonho com mais de 13 anos que vê agora concretizado. Leia a entrevista e fique a conhecer a história inspiradora do atleta que quebra todas as barreiras para conquistar os sonhos e objetivos.
“Corre pelos teus sonhos” é a frase que o define, quando é que começou esta “corrida” no mundo do desporto?
Já começou ainda antes de eu ser deficiente motor. Foi na escola, quando o professor de Educação Física nos mandava fazer o aquecimento para a aula, enquanto os meus colegas davam três voltas eu fazia o dobro. Na altura, o professor aconselhou-me a ir para o atletismo porque corria muito bem. Segui o conselho dele. Falei com amigos e fizemos uma equipa de quatro, em Vila Real, cidade de onde sou natural. A partir daí participámos em várias competições, tendo já nessa altura conseguido atingir bons resultados. Tudo começou aí. Depois de ter ficado paraplégico e depois de dois anos de hospitais, um dia um amigo convidou-me para jogar basquetebol. Na altura desconhecia que as pessoas com deficiência podiam fazer desporto e a ideia que tinha desta modalidade eram aqueles senhores altos a jogar, com o cesto enorme. Fui fazer um treino experimental e depois não demorou muito até estar integrado na equipa. Joguei basquetebol durante 10 anos, os últimos dois representei a seleção nacional. Mas o atletismo sempre foi o meu desporto favorito. Em 2003 conheci o atletismo em Cadeira de Rodas, consegui que me emprestassem uma Cadeira e até hoje é correr pelos meus sonhos.
Costuma dizer que “nasceu duas vezes”, qual foi o ponto de viragem na sua vida?
Sim, a primeira vez nasci como todos nós. A segunda foi no dia em que fiquei Paraplégico. Os dois primeiros dias após a operação não me recordo de nada e quando acordei na cama do hospital não me conseguia mexer. Estive cinco semanas na mesma posição, posso dizer que se estivesse a morrer de sede não tinha força nem para chamar a enfermeira para me dar água. Após cinco semanas chegou o momento de sair da cama. Sentei-me na Cadeira de Rodas. Foi exatamente nesse momento que digo que voltei a nascer. Tive de aprender a fazer tudo de novo, desde comer, a vestir, sentar. Foi para mim o segundo nascimento porque tive que aprender tudo de novo, mas já com 18 anos.
Depois deste segundo nascimento, como se desenrolou o regresso ao desporto?
Depois de um ano no Hospital São João e nove meses no Centro de Reabilitação de Alcoitão regressei finalmente a Vila Real e voltei a reencontrar-me com o amigo que me incentivou a praticar basquetebol e surgiu novamente o atletismo. Experimentei o atletismo com a equipa com que jogava basquetebol que me deixou experimentar a cadeira adaptada para praticar a modalidade. Emprestaram-me uma Cadeira para levar para casa e treinar. Era uma Cadeira antiga e pesada mas que dava para sentir o gosto de correr. A partir daí foram 13 anos de trabalho e de muito treino para conseguir atingir os objetivos a que me propunha.
[caption id="attachment_2829" align="alignleft" width="200"] Mário Trindade, atleta Paralímpico natural de Vila Real/ Foto: Salomé Ferreira[/caption]
Durante esses 13 anos sempre teve o sonho de participar nos Jogos Paralímpicos?
Esse é o sonho de qualquer pessoa que é atleta, sonha estar na maior competição que existe. Não há um atleta de verdade que se sinta realizado no final da carreira se não estiver presente numa competição assim. Era o meu sonho de há muito tempo, até mesmo quando andava a pé via os jogos na televisão e sonhava que um dia gostaria de estar lá a correr. Quando me iniciei no atletismo em Cadeira de Rodas voltei a pensar que talvez fosse possível.
Qual foi a sensação quando finalmente recebeu a notícia que iria integrar o comité Paralímpico este ano no Rio de Janeiro?
A sensação foi brutal. Primeiro tive um desgosto, apesar de ter os mínimos para participar, o comité internacional só atribuiu nove vagas a Portugal, ficaram de fora oito aletas, incluindo eu. Entretanto houve a exclusão da Rússia por causa do escândalo do doping e então todos os atletas portugueses foram chamados novamente. Quando me ligaram foi uma alegria enorme mas para ser sincero só acreditei quando entrei no avião e aterrei no Rio de Janeiro. Não há palavras para descrever a entrada na cerimónia de abertura, ver aquela multidão. Quando Portugal entrou o barulho que eles fizeram a aplaudir foi algo que nunca esquecerei tão cedo.
Foi um caminho percorrido até aqui que fez sempre acompanhado?
Sim, nada se consegue fazer sozinho e eu graças a Deus sempre tive pessoas ao meu lado. Tenho uma boa equipa por trás que também me ajuda a chegar onde quero porque sozinho era impossível. O desporto Paralímpico em Portugal ainda não é visto como de alta competição, não se apoia devidamente e posso dizer que o que consegui até hoje é graças aos amigos e família.
É essa a principal dificuldade, conseguir financiamento?
Sim, sem dúvida que é a maior dificuldade. A verba que nos dão para as competições é pouca, praticamente há atletas que gastam isso num mês e numa ida a uma competição. Tenho 8750 euros para me preparar durante um ano devidamente para as competições e isso não chega a nada, cá em Portugal não há muitos atletas de alta competição e eu para competir com os melhores tenho que ir ao exterior. Convém estagiar com os bons atletas para estarmos ao nível deles. Não se pode estar num nível Paralímpico a pensar numa questão financeira. Quando chegamos das competições só perguntam pelas medalhas mas, durante os 365 dias de um ano, ninguém quer saber de nós e das condições que tivemos para nos preparar. Portugal tem que rever urgentemente o apoio que dá para o desporto adaptado.
Quando partiu para o Rio de Janeiro tinha dois objetivos “ambiciosos”: fazer as finais dos 100 e 400 metros. Chegou a terras lusas com o sentimento de dever cumprido?
Cheguei cá com o sentimento de dever mais que cumprido. O objetivo que tínhamos traçado era que se fizéssemos duas finais já era excelente porque estavam lá os melhores do mundo e eu no ranking mundial dos 100 metros estava em 8.º lugar, e nos 400 estava em 18.º com alguns segundos de diferença para os finalistas. Nos 100 metros, a primeira prova que fiz, consegui fazer uma eliminatória boa, apurei-me logo para a final, fiquei em 6.º o que me deixou bastante satisfeito. Nos 400 metros a eliminatória correu-me muito bem, garanti também a passagem direta e um recorde nacional, depois a final já não me correu tão bem, terminei em 8.º lugar, mas o objetivo tinha sido conseguido.
As expetativas foram então superadas?
Mais do que superadas. Foi mesmo muito bom e ficamos extremamente contentes. Com as condições que tive, conseguir fazer o que fiz foi superior às expetativas de qualquer um de nós.
[caption id="attachment_2830" align="alignleft" width="200"] Mário Trindade afirma que 2016 foi o “grande ano” da sua carreira / Foto: Salomé Ferreira[/caption]
Após chegar do Rio de Janeiro foi ainda premiado com uma Medalha de Mérito Municipal concedida pelo município de Viseu.
Dado os resultados que fiz, apesar de trazer o 6.º e o 8.º lugar, trouxe também dois diplomas para Portugal que são extremamente importantes. Quando cheguei cá o município de Viseu, cidade onde estou a residir há cerca de três anos, entregou-me a Medalha de Mérito Municipal. Fiquei bastante contente com o gesto, o município de Viseu tem-me apoiado bastante desde o primeiro ano em que vim para cá e este foi mais um gesto para me dar força para continuar a fazer mais e melhor.
Estas conquistas deram-lhe mais força para continuar o seu percurso e quem sabe participar nos próximos Jogos Paralímpicos em Tóquio 2020?
Não preciso de muita motivação para continuar a fazer aquilo que faço porque já a tenho por natureza. Claro que são miminhos que sabem sempre bem. Agora terminou a época, comecei os treinos e para já vou trabalhar para o Campeonato do Mundo que vai decorrer em Londres no próximo ano. Claro que quero estar em Tóquio 2020 mas até lá ainda há muitas competições importantes pela frente e espero que a saúde também continue a permitir treinar. Se assim continuar espero estar em Tóquio e melhor do que estive agora no Rio de Janeiro. Espero até lá também conseguir mais patrocinadores, este ano vou trabalhar para conseguir mais apoios, para em 2020 estar em Tóquio a competir com os melhores de igual para igual.
Pode dizer neste momento que 2016 foi o grande ano da sua carreira?
Sim, sem dúvida. Até agora foi um grande ano porque tive duas competições internacionais que foram o Campeonato da Europa e os Jogos Paralímpicos. No Campeonato da Europa trouxe duas medalhas, uma de prata e outra de bronze e nos Jogos Paralímpicos apesar de não ter trazido medalhas foi importante estar lá, conseguir vir com um 6.º e um 8.º lugar para mim soube a ouro.
Qual foi o grande momento da sua carreira?
Tenho muitos momentos mas aquele que não me saí da cabeça foi mesmo a entrada no Estádio de Maracana e ouvir aquela multidão toda a berrar por Portugal. É um momento que não vou conseguir apagar. Ver aqueles atletas todos que um dia sonhei ser como eles e agora estive a competir com eles.
Olhando agora para trás e para todo o seu percurso qual é o sentimento que fica? Sente orgulho do caminho que percorreu?
Sinto muito orgulho porque se fosse fácil se calhar amanhã não me lembrava mas passei muitas dificuldades para lá chegar, tive de abdicar de tanta coisa. Nestes últimos anos não fiz nada que me pudesse cansar hoje para o treino de amanhã. Há pessoas que já me disseram que sou muito obcecado. Mas lá está, sendo obcecado ou não, consegui fazer aquilo que muitos se calhar só sonham.
Sem trabalho nada se consegue?
Sem trabalho nada se consegue. Sem dedicação é impensável, foram opções que tomei nestes últimos anos para conseguir alcançar aquilo que queria.
Está arrependido?
Não, não estou arrependido. Estou arrependido sim de não terem apostado mais em mim para eu poder fazer mais e melhor. Tudo aquilo que passei volto a fazer se sentir que há pessoas que acreditam em mim, no meu trabalho, e que em 2020 querem que eu esteja lá para dar luta e fazer outra vez todos os sacrifícios que tenho feito nos últimos anos.
Sendo um homem sempre com objetivos definidos, qual é o seu próximo passo?
Se dependesse só de mim dizia que para o ano queria ganhar uma medalha no Campeonato do Mundo. Quero ganhar uma medalha numa competição destas, já ganhei a nível da Europa mas não me chega, quero a nível mundial. Isto se depender só de mim, do meu trabalho, mas não depende só de mim, depende de muita coisa e para isso preciso de apoio. Se até lá não conseguir apoio vou ter de repensar os objetivos. Tudo vai depender do apoio que consiga para a próxima época.