Texto e FOTOS: André Rubim Rangel
Considera-se ser uma pessoa com mão-cheia de S’s: sortuda, solidária, simples, simpática e sentimental? Como coroa estas mais-valias?
Não costumo fazer avaliações sobre a minha personalidade. Deixo isso para os outros e cada um faz a avaliação segundo o lado que conhece melhor. Mas costumo dizer, e já escrevi, que sou um homem de muita sorte. Tive muita sorte na família e tive sorte na vida política também. Mas, como também se costuma dizer, às vezes para termos sorte é preciso uma boa dose de trabalho.

Onde sentiu ser mais fiel a si próprio e à sua maneira de ser e estar: no cargo de primeiro-ministro ou no de presidente da República Portuguesa? Porquê?
Procurei ser fiel ao superior interesse nacional e à minha consciência em todos os momentos em que desempenhei funções públicas. Ser primeiro-ministro naqueles primeiros dez anos da integração europeia foi um desafio extraordinário, um privilégio que nos deu, a mim e aos governos a que presidi, a oportunidade de fazer o desenvolvimento acontecer a um ritmo que Portugal não conhecia e que não voltou a conhecer depois. Fui Presidente da República num tempo muito diferente, mas muito desafiante também, em que creio que a minha experiência de governo e conhecimento das questões de economia e finanças e do funcionamento da União Europeia foram muito úteis para o exercício de uma magistratura de influência ativa e para ajudar o país a atravessar uma das mais graves crises que conheceu.
"Posteriormente, podemos sempre dizer que teríamos feito de outra forma, mas com a informação que tinha em cada momento, tomaria provavelmente as mesmas decisões".
Posicionando o nosso país na altura em que estava nessas funções e posicionando-o agora, faria tudo igual ou mudaria algo nas decisões tomadas? Em que baseia estes seus critérios?
O processo político de decisão não beneficia da capacidade de uma plena antevisão do futuro – o que permitiria eliminar ou pelo menos reduzir a possibilidade de errar. O que posso dizer é que, em cada decisão que tomei, quer enquanto Primeiro-Ministro, quer enquanto Presidente da República, tive em conta uma análise tão rigorosa quanto possível das suas consequências e da ponderação do custo-benefício de cada decisão. E segui a máxima que Sá Carneiro ensinou aos que fizeram parte do seu governo: em cada momento, adotar o critério do superior interesse nacional, tendo em conta a opinião pública, mas sem confundir esta com a opinião publicada. Posteriormente, podemos sempre dizer que teríamos feito de outra forma, mas com a informação que tinha em cada momento, tomaria provavelmente as mesmas decisões.
Olhando para trás, qual considera ser a sua obra de eleição realizada em Portugal, tanto quanto líder do Governo como chefe de Estado?
É difícil destacar uma ‘obra de eleição’ em dez anos de governação que foram pródigos em reformas tão díspares que permitiram uma verdadeira transformação da nossa sociedade. Mas eu diria que o reforço da igualdade de oportunidades, como resultado de um vasto conjunto de políticas que resultaram não só em crescimento económico, mas também numa intensa ação social e no aumento quantitativo e qualitativo da educação em Portugal, é aquilo de que mais me orgulho. Como Presidente e tendo em conta as circunstâncias difíceis da vinda da troika, chamada pelo governo do Partido Socialista para evitar a bancarrota, talvez destacasse o trabalho, muitas vezes silencioso e discreto, para ajudar Portugal a libertar-se do programa de assistência financeira, evitando um segundo resgate, o que aconteceu com muito mérito do governo de Pedro Passos Coelho.
No ano em que se casou cumpriu serviço militar em Moçambique. O ter estado lá ajudou-o a mudar a visão que tem ou que tinha da colonização? Ainda hoje há gente que fala magoada de todo esse processo / transição nos PALOP…
Fui mobilizado para prestar serviço militar em Moçambique quando era estudante do ISCEF. Normalmente aos estudantes era permitido adiar o serviço militar, mas a mim foi recusado o adiamento. Casei-me 11 dias antes de embarcar e a minha mulher foi comigo. Moçambique marcou o início da nossa vida em comum, numa época em que a Guerra Colonial ainda estava longe dos dias mais sangrentos. O processo da descolonização foi muito doloroso e muitas pessoas sentiram-se traídas e abandonadas, perdendo tudo o que tinham de uma forma dramática. Mas quero destacar que considero notável que o Portugal democrático tenha conseguido construir uma relação saudável com os PALOP. Empenhei-me seriamente nisso, envolvendo-me nos processos de paz de Angola e de Moçambique quando era Primeiro-Ministro e procurando sempre manter excelentes relações com os PALOP e sublinhar a importância da nossa língua e passado comuns.
Atualmente olha de maneira diferente para aquelas verdadeiras “forças de bloqueio” que fizeram face à sua governação?
As forças de bloqueio existiram, não foram uma figura de estilo. Repare que durante o tempo em que fui Primeiro-Ministro houve um líder partidário do maior partido da oposição que se demitiu em protesto contra a interferência do Presidente da República no seu diálogo com o governo – a propósito da revisão constitucional. E houve um líder sindical que disse que foi impedido de assinar um acordo de concertação social por interferência de um líder do PS. O que me satisfaz é ver que, apesar das forças de bloqueio, cumprimos o mandato que os portugueses nos deram e conseguimos desenvolver o país de uma forma notável.
Sendo sempre a vencedora dos atos eleitorais a crescente abstenção, pelo povo estar desalentado e desacreditado na classe política, não seria mais que oportuno instaurar-se já o voto eletrónico, entre outras medidas que combatam a abstenção?
Não me parece que o voto eletrónico seja uma prioridade no combate à abstenção. Considero, no entanto, e disse-o recentemente, que creio ser necessário repensar o nosso sistema eleitoral, eventualmente com a criação de um círculo nacional ao lado dos círculos regionais. Já quando era Presidente da República promovi estudos sobre o alheamento dos jovens em relação à política. Creio que a situação se está a agravar e a alastrar em termos etários. Faz falta uma mudança na ação política concreta que traga uma nova esperança aos portugueses, principalmente aos mais jovens. Os anos do século XXI têm sido de decadência económica em relação aos países da UE. Não devemos tomar nem a democracia, nem a liberdade por garantidas.
"Mas como o governo tem aversão a reformas fundamentais para promover o crescimento da economia, Portugal está a tornar-se num país de salários mínimos, a que se junta a brutalidade de impostos".
Como professor, o que sente ao ver a classe ser gradualmente desvalorizada, de modo geral, com imensos contratados a demorarem a efetivação no Quadro, a estarem a receber o mesmo há anos e sempre com horários e destinos incertos, ano após ano?
Os salários em Portugal são baixos, não é uma realidade exclusiva dos professores, nem apenas do sector público. E tem aliás sido essa a causa de um constante fluxo migratório de tantos jovens qualificados e empreendedores que, em face de magras ofertas em Portugal, partem para o estrangeiro em busca de melhores oportunidades de futuro. É um problema da maior gravidade. Mas o que é preciso explicar às pessoas é que só é possível aumentar salários de forma sustentável quando há crescimento económico e aumento da produtividade. Neste momento, temos uma situação absurda em que há aumentos salariais no sector privado que são, além de decretados pelo governo, financiados pelo governo! Ou seja, o governo aumenta o salário mínimo por decreto para níveis que sabe que as empresas não conseguem pagar e então dá-lhes o dinheiro para que paguem aos seus trabalhadores. O sector público, por exemplo, precisa de atrair bons profissionais e para isso tem de oferecer melhores condições. Isso é verdade para os professores, mas também para os médicos, para os enfermeiros, para os técnicos superiores em geral. Mas como o governo tem aversão a reformas fundamentais para promover o crescimento da economia, Portugal está a tornar-se num país de salários mínimos, a que se junta a brutalidade de impostos.
Sente que os desafios dos seus livros «Cumprir a Esperança», «Construir a Modernidade» e «Ganhar o Futuro» vão sendo cumpridos ao longo dos anos, tais como o de criar mais riqueza, o de promover o bem-estar e o de apostar nos Portugueses?
Esses foram, genericamente, os desafios que os meus governos, entre 1985 e 1995, procuraram cumprir. Mas o trabalho do governo é, por definição, sempre inacabado. O que posso dizer é que as expectativas dos Portugueses têm sido bastante defraudadas ao longo dos anos do século XXI e do ponto de vista económico o desenvolvimento do país está muito aquém do que devia estar e, como tal, a qualidade de vida dos Portugueses está também ela aquém do que podia e devia estar. Esse atraso fica patente no facto de estarmos a ser ultrapassados por países do Leste que entraram na União Europeia muito depois de nós e partiram de situações muito piores do que a nossa. Eu creio que isso deve ser uma causa de preocupação. É urgente um abanão político que retire a sociedade portuguesa da apatia e acomodação perante o rumo de empobrecimento relativo que Portugal tem vindo a trilhar.

Sendo este jornal da área do Alto Douro, peço-lhe um exercício de memória dos melhores momentos – tanto profissionais como pessoais – que tenha vivido e visitado nesta região…
Tenho excelentes memórias da região do Douro. Ainda muito recentemente estive com a minha família a navegar no Douro, aproveitando um fim-de-semana em Marialva. Quer enquanto Primeiro-Ministro, quer enquanto Presidente da República, estive variadíssimas vezes no Alto Douro. Como Presidente da República recordo a minha participação na sessão comemorativa dos 250 anos da Região Demarcada do Douro que teve lugar na Régua. Recordo igualmente a comemoração do Dia de Portugal em 2015 em Lamego em que lembrei o Vale do Douro como a terra de alguns dos melhores vinhos do mundo, de uma gastronomia de exceção e de uma paisagem de ímpar beleza.
Aqui, e em termos governativos, podemos considerar seu o momento alto as novas travessias ferroviárias criadas no Douro e implantadas entre as décadas de 80 e 90? Porquê?
Eu escrevi recentemente um livro [Uma experiência de social-democracia moderna, 2020] em que detalhei os processos de decisão da construção de algumas grandes obras públicas nos meus mandatos como primeiro-ministro. Entre os projetos estão as pontes de S. João e do Freixo e sobretudo sobre a primeira houve histórias muito engraçadas, com ameaças de que iria cair no dia da inauguração e de que o Governo estava a pôr em causa a segurança do convidado Presidente Mário Soares, com intermináveis declarações televisivas sobre o assunto! São obras que perduram no tempo, mas também marcante e num âmbito mais cultural, foi a aquisição do Parque de Serralves, no Porto, ou o lançamento do programa das Aldeias Históricas, num âmbito que vai para além do Douro. Creio que, num caso e noutro, houve um acréscimo de bem-estar à vida das pessoas, que deve ser uma medida da decisão política. Agora a governação vive muito da propaganda.
"Com o tempo, Putin transformou-se num ditador, cada vez mais perigoso".
Ao longo dos seus mandatos chegou a estar com Vladimir Putin. Como foi esse encontro e que impressões tirou dele? E agora, como caracteriza essa personagem com a invasão criminosa na Ucrânia?
Recebi Putin em 2007, quando Portugal exercia a Presidência do Conselho da União Europeia, no âmbito da cimeira União Europeia-Rússia. A cimeira foi em Mafra mas, no dia anterior, recebi Putin em Lisboa. Fiquei com a sensação de que era uma pessoa fria e dura, sem vontade para fazer cedências. Isto foi ainda no seu segundo mandato, antes de ele ceder o poder a Medvedev, com quem me reuni em Novembro de 2008 e, portanto, quando ainda havia a ficção de que a democracia funcionaria na Rússia. Com o tempo, Putin transformou-se num ditador, cada vez mais perigoso. A guerra da Ucrânia tem-nos trazido imagens de morte e de destruição que eu não esperava ver numa Europa do século XXI. Esperam-nos tempos duros, porque a guerra trará consequências penosas para todos e isso vai testar a capacidade de os europeus continuarem firmes ao lado dos ucranianos. Está em causa a nossa segurança, a nossa liberdade e a nossa democracia.
Quais foram as personalidades, duas internacionais e duas nacionais – uma ligada à política e outra não –, que mais o impressionou / gostou de conhecer e a que menos gostou? Quais os motivos das escolhas?
Um dos privilégios da vida política é o de nos cruzarmos com pessoas extraordinárias e de podermos conviver com elas, por vezes longe dos holofotes. No meu tempo de primeiro-ministro, um tempo de grandes mutações políticas na Europa e no mundo, tive oportunidade de contactar e ver de muito perto como, por exemplo, o Papa João Paulo II, Gorbatchev, Thatcher, Reagan e Kohl moldavam um mundo diferente e melhor. Estamos a precisar de novos líderes com capacidade para darem à Humanidade esperança num mundo melhor. Claro que acabamos por nos cruzar com outras de que levamos recordações menos boas, mas eu permito-me não responder a essa questão na medida em que são ossos do ofício.
Além das 4 altas condecorações nacionais que detém, possui 54 altas condecorações de Estados internacionais, dos cinco continentes. Algo notável! Há alguma que tenha um sentido especial para si, que mais destaque ou que mais o tenha sensibilizado? E porquê?
As condecorações são, na sua maioria, o resultado da ação diplomática que exerci, quer enquanto Primeiro-Ministro, quer enquanto Presidente. Atribuo especial significado às que me foram atribuídas após a conclusão dos meus mandatos: a Grã-Cruz de Cristo, que me foi dada pelo Presidente Mário Soares depois de deixar São Bento em 1995, e os Grandes-Colares da Liberdade e do Infante D. Henrique, dados pelo atual Presidente da República. O Colar do Infante recebi-o este ano, aliás com enorme surpresa, na comemoração dos 15 anos da EPIS (Empresários pela Inclusão Social).
"Em política não há certezas e não se deve esperar gratidão ou reconhecimento".
Por último, solicito-lhe uma mensagem final motivacional para os nossos leitores, baseada no seu lema de vida ou nalguma expressão de autor que sempre o inspirou…
Aos jovens, principalmente aos oriundos de famílias modestas, quero dizer-lhes que, apostando fortemente na educação e com trabalho sério, é possível subir na vida. O caminho será mais fácil se tiverem a seu lado uma família unida em que os valores da fraternidade e da entreajuda são cultivados. Àqueles que tenham atração pela vida pública, aconselho a que adquiram primeiro a capacitação para o exercício de uma atividade profissional, porque em política não há certezas e não se deve esperar gratidão ou reconhecimento.