Em 76 anos de vida, pouco mais de 50 foram dedicados ao futebol, enquanto jogador profissional e, depois, como treinador. Como foi essa transição?
Isso foi a sequência lógica da minha vida, que começou aos 16 anos no SL Benfica. Fui de Vila Real de Santo António à experiência, entre cento e tal miúdos, e acabei por ficar. Passei a ser autossuficiente muito novo, sozinho, sem família. Como jogador tive momentos bons e menos bons: fiquei longe da carreira que eu desejaria e que poderia ter tido, devido à qualidade que toda a gente reconhecia, passo a imodéstia. A carreira de treinador acabou por recompor e compensar as coisas. A sorte é aleatória, mas houve alturas como jogador em que foi madrasta comigo: tive propostas de jogar no Sporting e no FC Porto, três vezes, e eu queria ter ido, mas houve sempre algo que impediu que se concretizasse. Isso acabou por limitar numa carreira que poderia ter sido bem melhor, mas acabou por ser sofrida. Tirei o curso de treinador no fervor da revolução de Abril, em 1975, por influência e insistência do meu irmão, porque eu não queria ser treinador de futebol! E, depois, acabei por ter mais sucesso como treinador!
Treinou equipas no Algarve, sua região, na Madeira, na Estremadura, no Minho e no Douro Litoral. Mas não em Trás-os-Montes e Alto Douro, área deste jornal. Nunca lhe surgiu nenhum convite daqui? Se pudesse ter jogado ou treinado um clube duriense qual gostaria que fosse e porquê?
Que eu me lembre, pois a memória já não é a mesma, não recebi nenhum convite desta referida região. A equipa que conheço melhor e que pode ser feita referência é o Chaves que, durante alguns anos, foi uma equipa com protagonismo grande na primeira divisão e com uma massa adepta muito aficionada. Era sempre difícil jogar em Chaves, não só pelo valor que a equipa tinha, mas também pela paixão que os flavienses têm pelo seu clube, fazendo uma pressão muito grande no adversário.
Como cidadão e turista já visitou muitas vezes o Alto Douro? O que destaca?
Poucas vezes tive oportunidade de ir, pois as nossas passagens – concretamente em Chaves – eram muito rápidas, para os jogos, não havendo tempo extra para visitas. A primeira vez que fui a Chaves foi com a seleção militar, que defrontou o Desportivo. Mesmo estando em Espinho, onde vivo há 42 anos.
Para si, o que representa ser o treinador vivo com mais jogos disputados (560) na Primeira Liga?
Para mim é uma curiosidade. De facto, foram muitos jogos em muitos clubes que treinei em Portugal.
O seu clube da juventude é o Benfica. Ainda é o de sua eleição?
O clube da minha infância é o Sporting, já que o meu pai e o meu irmão, mais velho do que eu, são sportinguistas ferrenhos. Depois mudei de clube quando joguei no Benfica e passei a ser benfiquista. Mas aos meus 15 anos, após acabar um torneio de dez dias que tínhamos todos os anos na minha terra, em Vila Real de Santo António, vou a entrar em casa e ouvi uma voz que não era do meu pai nem do meu irmão, a dizer: “amanhã, às 9h, estará aqui um carro para levar o seu filho para o Benfica”. Quando ouvi aquilo fugi logo de casa, para casa duma tia minha, onde estive uma semana, pois não queria ir para o Benfica nem morto! Tentavam convencer-me, mas eu não queria mesmo! No ano seguinte, acabou por ser diferente e lá fui.
E que reação teve quando, como treinador do Sporting, venceu por 7-1 ao Benfica? Essa que foi a maior goleada de sempre no dérbi lisboeta.
É verdade, ainda se mantém essa goleada. Isso foi um episódio. E é curioso que depois dessa vitória, a direção do Sporting queria renovar mais um ano comigo e eu disse que não! Porquê? Aquela equipa que eu tinha não era boa. Aquela vitória assim foi apenas esporádica, apenas aconteceu sem se prever. A equipa do Benfica era melhor do que a nossa, mas eu disse aos meus jogadores: “nós vamos jogar em contra-ataque”. E assim foi, em casa, praticamente num 4-5-1! Eu tinha um jogador inglês na equipa que não era um primor de técnica, mas super rápido e hábil, que auxiliava e jogava junto do Manuel Fernandes. Fizemos sete golos em contra-ataque, quatro dos quais marcados pelo Manuel Fernandes. Essa foi, para mim, a única forma de conseguirmos ganhar aquele jogo, num ano em que o campeão nacional foi o Benfica. Passado mês e meio daquele jogo, em que tudo amenizou, acabei por ser despedido.
E festejou essa vitória vivamente ou discretamente, já que num misto de emoções entre os clubes de sua preferência e o de seu pai?
Claro que festejei, ainda para mais uma vitória daquelas e sobre o Benfica, pois trabalho é trabalho, conhaque é conhaque. Há que não misturar as coisas!
Considera que o seu tempo áureo e de maior sucesso foi no Egito, treinando o Al-Ahly?
Acho que sim! Curiosamente, até se diz: “nunca voltes a um lugar onde foste feliz”. Eu saí três vezes do Al-Ahly, voltei lá três vezes e fui feliz sempre! Portanto, ajudei um clube a ganhar 21 títulos: 8 continentais (4 Ligas dos Campeões e 4 Supertaças de África). Devo ser um dos únicos treinadores no mundo, se não o único, que fez 9 finais continentais.
Além disso, foi o primeiro treinador do mundo a levar uma equipa africana ao pódio do Campeonato de Clubes da FIFA… Quais foram os seus principais trunfos e métodos para alcançar tudo isso, mesmo técnico-táticos?
Acho que tenho aquele espírito que os Portugueses tiveram ao longo da História: um espírito aventureiro, de tentar inovar sempre. Eu sempre disse que queria fazer uma experiência no estrangeiro, porque achava ter capacidades, mas sem vaidades – porque nunca fui de vaidades! –, e assim foi! Quanto à estratégia, nos cinco anos antes em que estive no Boavista meteu-se-me na cabeça jogar em 3-4-3. Ninguém em Portugal jogava assim! Nem me lembro nos anos todos em que fui jogador haver algum treinador a fazê-lo. Se o fez foi num jogo ou noutro, mas não quatro épocas seguidas como fiz no Boavista. Fui inovador nessa área. E quando fui para o Al-Ahly, o maior clube de África e do Médio Oriente – com mais de 100 milhões de apoiantes –, levei essa estratégia. Já que a cultura técnico-tática no Egito era altamente deficitária e interpretar um 3-4-3 não era fácil. O que é facto é que consegui: o clube não ganhava a Liga dos Campeões há 14 anos e, nesse meu primeiro ano, ganhámos também a Supertaça, que o clube nunca tinha ganho. Curiosamente, perdemos o campeonato na última jornada. Depois fui-me embora, por divergência com o diretor técnico, que se portou mal comigo…
Depois, na segunda temporada no Egito, conquistou o triplete e fez o recorde de 55 partidas sem perder. Como foi gerir física e psicologicamente, a si e aos seus jogadores, situações excecionais como essas?
Não foi fácil. No Egito vive-se o futebol com muita intensidade e com uma rivalidade muito grande entre o Al-Ahly e o Zamalek, onde está agora o Jesualdo Ferreira. Eu tenho também o melhor resultado de dérbis entre ambas as equipas, onde cheguei a ganhar 6-1 ao Zamalek. Foi um momento marcante! Aquilo perdura na memória e continuará, mesmo depois de eu morrer, pois todos os anos no dia dessa vitória eu recebo sempre mais de 20 mensagens do Egito a celebrar essa vitória. Eles vivem apaixonadamente o futebol! E curiosamente, na Liga dos Campeões, o Al-Ahly era conhecido por ser a equipa mais defensiva de África e, comigo, passou a ser a mais ofensiva: eram golos atrás de golos e com mais posse de bola.
Passou, este ano, uma década da tragédia de Port Said, onde foi também uma vítima. À distância dos factos, o que lhe fica desse momento e que lição aprendeu?
O que ficou foi, precisamente, a paixão que os egípcios têm por mim, que não só os adeptos do Al-Ahly. Eu todos os dias recebo mensagens e emails do Egito, não falha um dia. O que me salvou foi essa admiração que eles me têm, como um ídolo. Aquilo que fui cá, fui também lá: um indivíduo frontal, direto, que não tem medo e que é “pão, pão, queijo, queijo”. Quando terminou o jogo, a minha equipa técnica e médica conseguiu fugir. Apagaram-se as luzes, sem ninguém saber e se aperceber, e eles abriram propositadamente as portas onde estavam os nossos adeptos para matarem. Eu vi atirarem gente da bancada, que era altíssima, para a rua. E morreram. Eu pensei para mim: se eu me ponho a correr eles matam-me, certamente. Eu tinha dois funcionários do clube ao pé de mim que me protegeram. Eu fui andando, tranquilamente, para o balneário mas atento, pois havia muitos adeptos lá com a conivência da polícia. No meio da multidão recebia muitos beijos e abraços e alguns pontapés nas pernas por estar muita confusão. Não consegui entrar no balneário, mesmo depois de esperar uma hora numa sala. Aquilo foi na altura da revolução e os adeptos do Al-Ahly foram como que um garante do sucesso da mesma. Lá me meteram num carro com vidros foscos e fui para um acantonamento militar, onde estive duas horas. De seguida, levaram-me para o aeroporto – porque tínhamos voo de regresso ao Cairo – e estavam a chegar os meus jogadores, em cima de quatro tanques de guerra. Aquele episódio foi algo louco! Eu renasci naquele dia.
Também há uma década passou à reforma. De que forma a tem vivido e passado? O que mais lhe agrada nela?
Os primeiros três-quatro anos foram complicados. Mas eu continuava a ter uma relação com o futebol através do programa desportivo, na RTP, à quinta feira à noite. Isso obrigava-me a ver os jogos todos com atenção, com olhos de treinador, para depois comentar a minha visão de jogos. Se bem que nesses programas, e nos jornais, o que conta são os três grandes e dão menor atenção às outras equipas. Passava bastante tempo em frente à televisão a ver os jogos. Agora já não vejo jogos, apenas olho para eles.
Portanto, já não vive com a mesma intensidade o desporto na sua vida ou cansou-se dele?
Não vivo com essa intensidade de antigamente. Sou, somente, um adepto do futebol. Dificilmente eu vejo um jogo até ao fim. Se não estiver a agradar-me eu troco de canal ou vou fazer outra coisa.
Dá agora mais atenção a outras áreas sociais e demais sectores que dantes não dava tanta atenção e importância? Se sim, tais como?
Agora tenho uma vida perfeitamente tranquila. Curiosamente, antes quando eu trabalhava – e que seria mais difícil de o fazer –, eu lia 70-80 livros por ano. Atualmente leio cerca de um terço. Perdi um pouco o bom hábito da leitura e estou sempre a dizer a mim próprio que tenho de readquiri-lo. Tenho aqui uma série de livros, que comprei para ler, e espero voltar a ter essa vontade de o fazer. De resto, faço as minhas caminhadas regulares durante os dias úteis. Faço, no mínimo, uns 12-13 km por dia. É uma forma de ocupação do tempo e de manter alguma saúde física e mental.
Do que mais sente saudades quando pensa na sua carreira? Ou já não pensa nela nem fica saudosista?
Não as sinto porque foi uma vida muito intensa. Vivi sempre a minha vida principalmente como treinador. Costumo dizer que se eu tivesse a mentalidade de treinador que tive como jogador eu tinha feito uma carreira completamente diferente daquela que fiz, para muito melhor. Se calhar, não tinha mesmo sido treinador. O que fiz está feito: são já 76 anos! Não tenho qualquer problema em perceber que tudo tem o seu tempo e que o meu tempo esgotou-se, por iniciativa própria. O meu amigo Jesualdo Ferreira, por exemplo, é mais novo do que eu mês e meio e continua a treinar e foi este ano campeão no Egito, pelo Zamalek. Acho que tomei a melhor decisão em parar de treinar.
O que mais lhe preocupa e entristece perante as várias crises – nacional e internacional – que estamos a viver e do que daí tem derivado? Qual a sua visão / opinião sobre estas crises?
Vou estando com a preocupação normal face às mesmas e como cidadão do mundo que foi a 79 países ao longo da carreira. Vi muita coisa e vivi muita coisa. As preocupações inerentes para quem esteja atento e olhe para o estado do país e do mundo. Um dos aspetos que mais me aflige é a mudança climatérica. Estão a fazer esta cimeira, num local que conheço bem, e que acho que não vai resultar em nada! Estas alterações climáticas preocupam-me grandemente não por mim, mas pelo meu filho e meus netos, porque são eles que vão “pagar a fatura” da incúria que acontece mundialmente. Fazem muitas cimeiras, esta é mais uma, e depois continua na mesma. Outra preocupação é esta invasão da Rússia à Ucrânia, que é extremamente perigosa. Com ditadores, como este Putin, tudo de mau é de esperar. Pois o homem é o animal que tropeça duas vezes na mesma pedra… Portanto, estamos a um passo disto ser uma guerra generalizada, porque este Putin nunca vai sair dali derrotado, nem sair sem a dignidade que ele pensa que deve ter ou o sucesso que ele acha que pode ter. Depois, somos o país que somos, quase periféricos da Europa: já fomos um país com um passado absolutamente notável, mas hoje – costumo dizer na brincadeira – isto já não é um país, é um sítio. Com a política muito execrável que temos. Há políticos que são como as fraldas: tem de se mudar periodicamente e pela mesma razão. Tudo isto me preocupa, sobretudo pela juventude. Pelos filhos e netos de toda a gente e o futuro dos mesmos. Os pais, e principalmente os políticos, é que deviam pagar! Eu estive em 24 países de África e as pessoas em Portugal não fazem a mínima ideia do que ela é… Parece um continente de venda ambulante, com uma pobreza incrível, um atraso tremendo e ninguém quer saber disso para nada! Como não me há de preocupar?
Para terminar, desafio-o a deixar-nos uma mensagem final de vitória e de alegria, como tantas que obteve. Quais as melhores formas das pessoas marcarem muitos “golos” nas suas vidas, naquilo que são e que fazem?
É difícil dar conselhos, quando vivemos num tipo de Sociedade perfeitamente materialista e interesseira, num país que está na cauda da Europa em diversos aspetos da vida. Mas, acima de tudo, cada qual deve ser igual a si próprio, a ordem, o respeito, a disciplina, a amizade, a disponibilidade para ajudarmos os outros. Que tudo isso seja no sentido do bem da Comunidade e das pessoas. Não seja sempre o dinheiro a contar! Eu tenho enfrentado a vida sempre, adaptando-a ao que se costuma dizer: peguei a vida pelos cornos, ou seja, de frente. Nunca fiz pegas de cernelha e dei sempre a cara. Acho que é o que todos devemos fazer: ter uma vida pautada pela seriedade e honestidade, não ter receio de dizer ou fazer aquilo que pensa sem ferir os outros e as suas suscetibilidades.